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Fatos e fakes da Reforma Administrativa

Marco Túlio da Silva

Fatos e fakes da Reforma Administrativa

10/11/2020

Qualquer pesquisa que indague aos entrevistados se é a favor da mentira irá apurar como resultado um sonoro NÃO. Mas, se o mesmo conteúdo for trabalhado para adquirir uma aparência de verdade, muitos passarão a defender e divulgá-lo. Assim nascem e se propagam as fake news.

Bem, o tema fake news é extremamente relevante, mas para fins deste artigo, vamos apenas partir do referencial público e notório de que notícias falsas existem.

O Brasil passou pelas reformas Trabalhista e Previdenciária, pelo teto de gastos (Emenda Constitucional95/2016) e outras medidas, ao argumento de que, quem não concordasse, estaria contra o Brasil pois, sem tais medidas, o país quebraria. Os estudiosos de finanças públicas demonstraram que referida quebra era uma falácia e que as medidas propostas aniquilavam direitos dos mais necessitados, mas a notícia falsa estava devidamente “tratada” e as medidas foram implementadas.[1]

Agora vem à tona a Reforma Administrativa e a “nova pseudo verdade” é de que com tantos servidores públicos “ganhando tanto” o país vai quebrar. Até parece que o Brasil tem no DNA algo do tipo “nascido para quebrar”.

Vamos testar a hipótese:

Sobre a alegação de que o Estado estaria com excesso de servidores, dados recentes divulgados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no relatório Government at a Glance 2019 eGovernment at a Glance Latin America and the Caribbean 2020[2], apontam que o Brasil tem 12,5% de servidores públicos em relação à população empregada, bem abaixo da média da OCDE, no caso 22%, e na média do indicador para a América Latina e Caribe, que é de 12,3%.

Ressalte-se que a população vem crescendo, em especial nas camadas de menor renda e patrimônio, que demandam cada vez mais serviços públicos para uma vida minimamente digna, e a quantidade de servidores públicos no Brasil tem se mostrado constante em percentual da população desde o início dos anos 2000 segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais RAIS-IBGE, indicando ganho de produtividade. No mesmo período, reduziu a proporção entre o número de servidores estatutários (servidores públicos) e o número de trabalhadores celetistas (trabalhador do setor privado) no Brasil.

Mas talvez o alegado problema pudesse ser explicado pelo quanto ganham os servidores públicos brasileiros. Afinal, alega-se que o Estado gasta muito e entrega pouco.

Aqui vamos nos pautar pelo estudo divulgado pelo Banco Mundial em 2019, denominado Gestão de Pessoas e Folha de Pagamentos no Setor Público Brasileiro: O Que Os Dados Dizem? [3] O estudo analisou dados dos servidores civis em nível federal e estadual. Ao examinar as despesas com pessoal do governo federal, no período compreendido entre 1997 e 2018, a conclusão foi de que essas “se mantiveram relativamente estáveis como proporção do PIB”, mesmo com o país amargando no período um inexpressivo crescimento do PIB.

A remuneração média do servidor público até chega a ser maior que a média do salário do trabalhador privado, mas a média é um indicador estatístico que esconde detalhes relevantes.

Por um lado, há grandes diferenças entre a remuneração nos poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo) e entre os níveis (Federal, Estadual e Municipal). Por outro lado, os profissionais mais qualificados são mais bem remunerados na iniciativa privada na maioria das profissões e especialidades. A estabilidade e alguns outros aspectos são o que ainda garantem a permanência dos servidores qualificados na esfera pública.

Bem, se é FATO que nem a quantidade de servidores nem o gasto com servidores validam a hipótese de que os servidores públicos são um peso para a sociedade brasileira, então o problema propalado é FAKE.

Mas ainda se poderia indagar sobre o aspecto qualitativo. Aqui, estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) realizado por Felix Lopez e Erivelton Guedes em 2018 [4] aponta que entre 1995 e2016, o percentual dos servidores federais com nível superior completo ou diversas modalidades de pós-graduação subiu de 45% para 78%, de 28% para 60%,entre servidores estaduais; e de 19% para 38%,entre servidores municipais.

No setor privado, dados da Rais-IBGE de 2018 apontam que 15,7% dos celetistas possuem nível superior completo, o que também justifica a diferença na média da remuneração entre o setor privado e o público.

O enfrentamento da COVID-19 está fazendo o mundo usar instrumentos de proteção trabalhista, renda mínima, assistência social, ajuda a empresas e, principalmente, fortalecer o sistema público de saúde, o que demonstra necessidade de se repensar a defesa de um Estado mínimo, de tal princípio da subsidiariedade, bem como a importância do servidor público.

O Brasil tem, sim, muitos problemas. A Administração Pública pode e deve seguir em evolução e melhoria, mas os servidores públicos fazem parte é da solução, vide as rápidas respostas e o papel desempenhado pelos servidores da saúde pública diante da COVID-19.Contudo, neste momento há quem cogite privatizar a atenção básica à saúde no Brasil [5]. A propósito, como o seu candidato às eleições municipais de 2020 se posicionou sobre este assunto? Sobreo debate recente a respeito da privatização do SUS, vale conferir texto de José Roberto Afonso (SUS deve ser fonte de criação de vaga) [6].

Também há que se destacar o esforço dos servidores da área de finanças públicas, em especial aqueles do quadro de arrecadação, fiscalização e tributação, para garantir os recursos públicos fundamentais para o estado suprir as demandas sociais.

Sobre tributação, de acordo com estimativas da OXFAM [7], a perda de receita tributária para 2020 pode chegar a 2% do Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina e do Caribe (US$ 113 milhões), o que equivale a 59% do investimento público em saúde em toda a região. Quem vai pagar a conta?

No caso do Brasil a OXFAM apresenta propostas emergenciais para gerar receitas. A principal delas é a criação de imposto progressivo (2,0% a 3,5%) sobre grandes fortunas (acima de US$ 1 milhão). Vale a pena conhecer as propostas no documento “Tributar os Super-Ricos para Reconstruir o País” [8].

Referido documento foi elaborado por dezenas de especialistas em finanças públicas, com a participação de servidores públicos, sob coordenação do economista Eduardo Fagnani.

O documento contém propostas concretas, com o objetivo de aliviar a carga tributária sobre os mais pobres, a classe média e as pequenas empresas; fortalecer estados e municípios; gerar acréscimo na arrecadação (estimado em R$ 292 bilhões); e tributar mais as altas rendas e os grandes patrimônios – o que afetaria apenas os 0,3% mais ricos (cerca de 1 milhão de pessoas).

Antes de terminar, duas reflexões:

“A verdade mora no silêncio que existe em volta das palavras. Prestar atenção ao que não foi dito, ler as entrelinhas. A atenção flutua: toca as palavras sem ser por elas enfeitiçada. Cuidado com a sedução da clareza! Cuidado com o engano do óbvio!” (Rubem Alves)
“Atitudes. Porque palavras o vento leva” (Machado de Assis)


Continuemos investigando e divulguemos os dados e fatos para que, o que é FAKE, não se torne NEWS.


[1] Sobre o assunto ver registros do seminário Reformas DESestruturantes do Estado de Bem-Estar Social, disponível em https://ijf.org.br/seminario-as-reformas-desestruturantes-do-estado-de-bem-estar-social/

[2] Disponível em http://www.oecd.org/publications/government-at-a-glance-latin-america-and-the-caribbean-2020-13130fbb-en.htm

[3] Disponível em http://documents1.worldbank.org/curated/en/846691570645552393/pdf/Sum%C3%A1rio-Executivo.pdf

[4] Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=36328&catid=422&Itemid=448

[5] Para saber mais sobre o assunto ver http://www.cosemssp.org.br/noticias/mocao-do-cosems-sp-pela-revogacao-do-decreto-no-10-530-e-em-defesa-da-atencao-basica-do-sus/

[6] Artigo disponível em https://www.joserobertoafonso.com.br/sus-deve-ser-fonte-de-criacao-de-vaga-afonso/

[7] Para saber mais sobre a OXFAM e os dados mencionados ver https://www.oxfam.org.br/noticias/proposta-de-tributacao-dos-super-ricos-brasileiros-e-lancada-em-live/

[8] Disponível em https://plataformapoliticasocial.com.br/wp-content/uploads/2020/07/Documento_Sintese.pdf

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